Autor: Ed Junior - Diretor de Combate ao Racismo da UNE
“E a boca seca, seca, nem um cuspe
Vai pagar a faculdade, porque preto e pobre não vai pra USP”
Em 2018, a cantora Bia Ferreira lançou uma verdadeira pedrada: “Cota não é esmola”. E não foi à toa. Naquele momento, o Brasil vivia uma transformação silenciosa dentro das universidades. Segundo dados da Agência Brasil, com base no IBGE, depois de mais de 15 anos das primeiras políticas de ações afirmativas, o percentual de pretos e pardos com diploma cresceu de 2,2% em 2000 para 9,3% em 2017. Um avanço, sim, mas ainda distante da igualdade. Entre os brancos, o índice chegou a 22%, mais do que o dobro.
Enquanto mais jovens negros conseguiam furar o bloqueio e ocupar as salas de aula, o corpo docente continuava praticamente o mesmo. Em 2018, apenas 16% dos professores universitários eram negros. É o retrato do Brasil: a maioria preta da população, 51%, ainda relegada aos cargos de limpeza e merenda, enquanto os espaços de poder, conhecimento e decisão seguem majoritariamente brancos.
De lá pra cá, a luta não parou. Tivemos avanços importantes, como a nova Lei de Cotas, relatada pela deputada federal Dandara Tonantzin, que garantiu mais segurança e permanência para estudantes cotistas, ampliou o acesso de quilombolas e reforçou que as cotas não são um teto, são o mínimo que o Estado deve assegurar. A lei também avançou nas cotas no serviço público.
Apesar de progressos importantes no acesso à graduação, o corpo docente do ensino superior ainda reflete uma grave desigualdade racial. Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) em 2023-24, apenas 21% dos professores universitários se declararam pretos ou pardos, enquanto o recorte “pretos” corresponde isoladamente a somente 2,9% do total docente. Em áreas especialmente críticas, como ciências exatas e naturais (“STEM”), o percentual de professores pretos, pardos ou indígenas era de apenas 7,4%. No contexto discente, as políticas de cotas e ações afirmativas mostram sinais claros de impacto: por exemplo, entre as matrículas por cotas raciais em instituições federais, houve crescimento de 266% entre 2012 e 2023.
Ainda que a proporção exata de estudantes negros em 2024 não tenha sido plenamente destacada nas fontes consultadas, há evidências de que o avanço de acesso é forte, o grande desafio agora torna-se a permanência, o aproveitamento e a ascensão para posições de poder acadêmico, que seguem majoritariamente ocupadas por brancos.
Mas a estrutura racista insiste em se reinventar. Em pleno 2025, vemos casos como o da professora Érica Bispo, pesquisadora de 45 anos, que foi vítima de discriminação racial depois que a USP, a mesma universidade que, séculos atrás, proibiu Luiz Gama de estudar lá, anulou o concurso em que ela havia sido aprovada em primeiro lugar para o cargo de docente de Literaturas Africanas e Língua Portuguesa.
A justificativa? No mínimo, pífia. A universidade alegou que havia “proximidade” entre a candidata e membros da banca baseada em postagens e expressões de amizade em redes sociais. Ou seja: quando uma mulher negra vence pelo mérito, inventam um novo critério pra tirá-la do lugar que conquistou.
Esse espectro tem nome: racismo institucional. E precisamos ir fundo nesse debate. O racismo é mais do que um comportamento, é uma estrutura de poder que define quem vive e quem morre na sociedade brasileira. Ele está na raiz da formação do Estado, nas regras do jogo econômico e nas instituições que deveriam servir ao povo. O capitalismo brasileiro nasceu e se alimentou da exploração da população negra, e o Brasil, último país das Américas a abolir a escravidão, ainda carrega as marcas profundas desse projeto de desumanização.
A USP, com seus 91 anos de fundação, é também fruto desse processo. Por trás do discurso de excelência e neutralidade científica, há um alicerce político e pedagógico que historicamente negou humanidade ao povo negro.
O racismo estrutural é o modo como essa engrenagem opera. Ele atravessa leis, instituições, políticas públicas e relações cotidianas, moldando o acesso a direitos e oportunidades. Não depende da vontade de alguém, está entranhado no próprio funcionamento do Estado. O racismo estrutural é o “modo normal” de operação da sociedade brasileira, que naturaliza os privilégios da branquitude e impõe barreiras históricas à população negra.
Essa lógica ainda se manifesta quando uma mulher negra, doutora, pesquisadora e qualificada como Érica Bispo, é impedida de ocupar o lugar que conquistou por mérito. O que está em jogo não é um caso isolado, é a estrutura funcionando como foi desenhada: para excluir O caso da professora, não é um caso isolado, escancara o racismo institucional, um mecanismo estrutural que opera dentro das instituições para manter a hegemonia branca e excluir pessoas negras, mesmo quando estas cumprem todos os requisitos formais. A Universidade de São Paulo (USP), ao anular o concurso em que Érica foi aprovada em primeiro lugar para uma vaga de docente em Literaturas Africanas e Língua Portuguesa, reproduz o padrão histórico de negação do pertencimento intelectual negro no espaço acadêmico. A justificativa usada , supostas “relações de proximidade” baseadas em postagens de amizade nas redes sociais, é um exemplo clássico da plasticidade do racismo institucional, que se adapta e inventa novas barreiras para manter a exclusão.
Esse tipo de racismo não se dá por atos explícitos de ódio, mas por decisões burocráticas e normativas que produzem o mesmo resultado: a marginalização de corpos negros e, especialmente, de mulheres negras em posições de prestígio.O racismo institucional é a “falha coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica”. É um sistema performativo que legitima condutas excludentes e naturaliza desigualdades, ao ponto de transformar a discriminação em “aparente normalidade”. Nesse caso, em específico, a USP não apenas ignorou o mérito acadêmico de uma mulher negra, como também reafirmou a crença de que o espaço do saber é propriedade branca
Esse é mais um sintoma estrutural. Mesmo com avanços nas políticas de cotas e ações afirmativas, o corpo docente das universidades brasileiras segue esmagadoramente branco. Isso revela como as instituições de ensino, que deveriam ser motores da equidade, continuam operando sob a lógica de um racismo patriarcal e heteronormativo, como descreve Jurema Werneck. Trata-se de um modelo de poder que não apenas exclui, mas também define quem tem legitimidade para ensinar, pesquisar e representar o pensamento nacional.
Esse é um espelho da democracia racial falida. Mostra que o racismo institucional não está nas margens do Estado, mas sim, parte da sua engrenagem. Romper esse ciclo exige mais do que discursos de diversidade; requer mecanismos de responsabilização, revisão de práticas seletivas e o reconhecimento de que o racismo, ao moldar decisões institucionais, é uma violação direta dos direitos humanos. Enquanto mulheres negras como Érica precisarem provar, todos os dias, que pertencem ao espaço que construíram com competência e suor, a universidade brasileira continuará sendo um espaço de privilégios, e não de justiça.
Essa é a ferida aberta que a universidade brasileira ainda insiste em esconder. Outras pessoas podem estudar sobre nós, mas nós mesmos não. A branquitude acadêmica naturalizou a ideia de que o povo negro é tema, nunca autor; é corpo observado, nunca mente que produz saber. Essa lógica é o coração do racismo institucional: transformar nossas vivências em dados, enquanto nos nega o direito de interpretá-las. É o mesmo mecanismo que transforma sofrimento em estatística e invisibiliza as potências que vêm da periferia, do quilombo, das comunidades que pensam, criam e resistem.
Durante minha graduação em Jornalismo na Universidade Federal de Uberlândia, tive apenas três professores negros, aos quais tenho profunda estima: o professor Reynaldo (que era substituto na época e hoje leciona na UEMG), a professora Rafaela Cyrino (minha eterna orientadora de pesquisa, atualmente na Universidade de São João del Rei) e o professor Gerson de Souza (professor que ainda leciona na no curso de Jornalismo, na UFU), de quem fui monitor por três períodos em Teorias da Comunicação.
Acompanhei de perto as dificuldades e perseguições que esses docentes enfrentaram dentro da faculdade: comentários como “não sabe dar aula” ou “é rígido demais” eram comuns. Mesmo diante disso, eles nos deram força para continuar, mostrando que muitas vezes precisamos de referências. E essas referências nos ensinam algo fundamental: em espaços institucionais, uma pessoa negra precisa ser sempre melhor, pois nunca é suficiente. Nunca. A pressão para provar competência é constante, e a excelência se torna uma obrigação, não uma escolha.
Nesse panorama, a reflexão é clara: quando a universidade se recusa a reconhecer o lugar de intelectuais negras e negros como Érica Bispo, reforça o pacto histórico da exclusão. O que está em disputa não é apenas um cargo de professora, mas o direito de redefinir o que é conhecimento. A cada vez que uma pessoa negra é barrada, o que se tenta manter é a velha hierarquia que diz: