Educação Como Arma: Malcolm X e o Poder do Autodidatismo na Luta por Libertação
Educação Como Arma: Malcolm X e o Poder do Autodidatismo na Luta por Libertação
Julia Wilker e Ed Carvalho
“Eles ensinam nossas crianças que Colombo ‘descobriu’ a América. Que Lincoln ‘libertou’ os escravos. Que este é o país da ‘liberdade’. Toda essa educação é um ato de guerra contra a verdade. Quando eu estava na prisão, descobri que cada livro de história é uma arma. E decidi: eu vou reescrever minha própria história, com minhas próprias mãos, mesmo que tenha que arrancar as páginas mentirosas com os dentes.” — Malcolm X (Malik el-Shabazz), discurso em Nova York, 1963.
Enquanto o Brasil assiste, horrorizado e inerte, a uma jovem negra ser vítima de uma tentativa de assassinato em um colégio de elite de São Paulo, um jovem negro ser torturado e morto no interior da Bahia pela polícia.
Esses episódios não são exceções. São expressões cruas de um país em que a necropolítica racial se disfarça de normalidade. Onde a elite segue blindada e a juventude preta é descartável. Onde a educação pública é sucateada, enquanto o Estado investe bilhões no encarceramento em massa e no armamento das forças repressivas.
Em 2024, o Brasil bateu recorde no número de mortes pela polícia — foram mais de 6.500 pessoas mortas, das quais mais de 80% eram negras. O mesmo Estado que deveria proteger nossos filhos os elimina ou permite que sejam massacrados no silêncio dos muros da elite. Em 2022, 76,5% dos homicídios no Brasil foram contra negros, representando 35.531 mortes intencionais. A taxa de homicídios entre negros foi de 43,1 por 100 mil habitantes, enquanto entre brancos foi de 10,8. Além disso, entre 2021 e 2023, o Brasil registrou a morte violenta de pelo menos 15.101 crianças e adolescentes, com média de 13,5 mortes por dia, sendo 83,6% dessas vítimas negras.
Esses dados evidenciam que a violência contra a juventude negra no Brasil não é um fenômeno isolado, mas parte de um padrão sistemático de marginalização e opressão. A educação, longe de ser um meio de emancipação, muitas vezes se configura como uma ferramenta de exclusão e violência simbólica. A jovem paulistana, ao ocupar um espaço acadêmico historicamente destinado à elite branca, desafia uma estrutura que insiste em definir quem “pertence” àquele ambiente.
A violência contra os corpos negros, seja nas ruas ou nas escolas de elite como a Mackenzie, reflete o mesmo mecanismo de opressão que Malcolm X denunciou em sua luta. Não é um caso isolado, mas parte de um sistema que historicamente busca silenciar, excluir e violentar corpos negros para manter a estrutura racista vigente. Malcolm, que enfrentou o apagamento do saber e a exclusão educacional, mostrou que essa violência é também simbólica: ela invisibiliza, desacredita e tenta negar a presença negra em espaços de poder e conhecimento.Dessa maneira, tanto a adolescente agredida na escola paulistana e Malcolm X são vítimas do mesmo mecanismo: a educação como arma de opressão.
Enquanto ela sofreu violência física por desafiar, com sua presença, a hegemonia branca em espaços acadêmicos privilegiados, Malcolm foi barrado pelo sistema muito antes de pisar em uma universidade. Sua resposta, porém, foi entregar um desafio às novas gerações: “Se não nos deixam aprender, aprenderemos apesar deles”. O autodidatismo radical de Malcolm, que transformou a prisão em uma universidade decolonial, é hoje replicado por coletivos negros que criam bibliotecas comunitárias e cursinhos populares.
A jovem de São Paulo, assim como Malcolm nos anos 1940, é alvo porque sua existência expõe a mentira da meritocracia. Se ele copiou o dicionário à mão para dominar a língua que o colonizador usava para subjugá-lo, ela enfrenta colegas que acreditam ter o direito de decidir quem merece ocupar aquele banco escolar. Os casos se cruzam no ramo da educação e além. Malcolm nunca teve a possibilidade de frequentar centros de elite acadêmica, pelo contrário, se encontrou na educação quando foi para o cárcere.
Lá dentro, conheceu as ideias de Elijah Muhammed — líder do grupo Nação do Islã —, converteu-se ao islamismo, por anos disse que sua libertação foi-lhe dada pela conversão, costumava dizer que uma boa religião é aquela que liberta e compreende seu fiel. Não estava errado, no mundo islâmico decidiu que se tornaria um cidadão exemplar, lição básica de todo muçulmano e um dos pilares da crença — junto da caridade, devoção a fé e amor ao próximo.
O sonho de Malcolm era se tornar advogado, passou toda a infância em lares adotivos e teve a certeza de que, se tornando jurista, conseguiria libertar seus irmãos do sistema que os limitava, encarcerava e assassinava. Infelizmente, não conseguiu acessar o ambiente acadêmico, parou de estudar na oitava série e faleceu sem realizar este sonho, além de inúmeros outros. Contudo, Malcolm X não foi somente um orador brilhante ou um líder revolucionário — ele foi, acima de tudo, um autodidata radical. Sua transformação intelectual foi eficaz, descobriu logo que a educação era a chave para desmontar as correntes mentais da opressão.
Malcolm X sabia que o epistemicídio — o apagamento dos saberes negros — era tão mortal quanto uma bala. Quando a adolescente paulistana foi encontrada desacordada no banheiro, não era apenas seu corpo que estavam tentando calar, mas sua potencialidade como intelectual negra. Malcolm enfrentou isso décadas antes: enquanto a história oficial reduzia Zumbi dos Palmares a uma nota de rodapé, ele devorava textos sobre o Império do Mali para provar que a África não começou na escravidão.
Se hoje a vítima brasileira é atacada por ocupar um espaço que “não lhe pertence”, Malcolm já respondera: “Quem definiu esse ‘lugar’? Os mesmos que roubaram nossos nomes, nossos deuses, nossa história?”. A conexão é visceral: a violência nas escolas de elite é a versão moderna do mesmo projeto que, nos anos 1950, mantinha livros sobre a África fora das bibliotecas públicas.
Em tempos de desinformação massiva e sucateamento da educação pública, sua história é um manifesto vivo: o conhecimento não é privilégio, é poder. Nos estudos, Malcolm começou copiando o dicionário palavra por palavra para entender conceitos que a escola, dominada por um sistema racista, nunca lhe ensinou, ele dizia: “A educação é o passaporte para o futuro, pois o amanhã pertence àqueles que se preparam hoje”. Ele não desistiu da ideia de ser universitário por estar em um sistema corrompido, longe disso, sempre fizera questão de lembrar do professor branco que lhe assegurou o quanto um homem negro jamais seria advogado naquele país.
Seu ensino guiado por livros encontrados na prisão foi poderoso, ao passo que lia sobre itens corriqueiros sociais, também tecia críticas ao ensino eurocêntrico e tinha o pensamento de que nada daquilo serviria para a formação de um homem negro. Afinal, o básico para um homem branco era tudo, mas o necessário para uma pessoa negra é a excelência, precisava saber todas as palavras, todos os dogmas e até mesmo idiomas, aprendeu árabe e latim. Adentrou no estudo decolonial com obras sobre Pan-africanismo de Marcus Garvey e com grandes releituras do Alcorão.
Enquanto o sistema tentava confiná-lo e limitar seu acesso à educação, já que essa é a maior forma de libertação, Malcolm fez da prisão sua universidade. As celas úmidas se tornaram salas de aula. As noites sem luz, iluminadas por lampejos de consciência, o homem que o Estado queria aniquilar estava, página após página, se tornando imortal. Enquanto a América branca vendia a ilusão de que negros não tinham história, Malcolm devorava obras sobre o Império do Mali, a filosofia islâmica e as revoluções haitianas. Ele sabia: o primeiro passo para a libertação é lembrar quem você realmente é.
O autodidatismo de Malcolm X não foi uma resposta à exclusão acadêmica, foi um ato de guerra. Um ato que ecoa hoje, quando estudantes negros ainda são forçados a questionar: por que nossa história começa com correntes e não com reinos? Por que, nos livros didáticos, Zumbi dos Palmares é um parágrafo, enquanto colonizadores são capítulos inteiros? Malcolm compreendeu que a educação dominante não só omite, mas apaga. E, ao apagar, justifica a opressão.
Seu método de estudo era meticuloso, quase militar. Ele não lia, mas desmontava cada texto, confrontando-o com a realidade de seu povo. Enquanto a academia branca glorificava a democracia grega, Malcolm apontava: "Enquanto filósofos debatiam em Atenas, africanos já construíam pirâmides e universidades em Timbuktu." Suas anotações nas margens dos livros eram como trincheiras — rabiscos de revolta, perguntas que virariam discursos.
Contudo, Malcolm não se limitou a criticar. Ele construiu. Suas palavras nas ruas de Harlem eram aulas públicas. Cada comício, uma sala de aula sem paredes. Quando dizia “Nós não somos americanos. Somos africanos no exílio”, ele não apenas denunciava o racismo, mas reeducava. Mostrava que a identidade negra não nasceu na senzala, mas em civilizações que o ocidente insiste em chamar de "primitivas".
Malcolm X foi assassinado há mais de sessenta anos, todavia, é notório que a luta por educação não se findou, nem mesmo teve tantos avanços tão notórios quanto ele desejava. Não é normal que uma aluna seja quase morta por colegas de classe, muito menos que a cada dia seja ainda mais difícil o acesso da população negra aos estudos. A adolescente agredida na escola paulistana não é um caso isolado. É um sintoma. O mesmo sintoma que Malcolm X diagnosticou décadas atrás: a educação como campo de batalha.
Seja pela violência física nas instituições de elite, seja pelo apagamento histórico nos currículos escolares, o sistema insiste em dizer aos corpos negros: “Vocês não pertencem aqui.” Mas Malcolm já havia respondido a essa mensagem com uma pergunta: “E quem define o ‘aqui’?”
Se as escolas não nos ensinarem, ensinaremos nós mesmos. Se os livros nos mentem, escreveremos os nossos. Se as universidades nos excluírem, criaremos nossas próprias salas de aula. Porque autodidatismo nunca foi sobre estudar sozinho: é sobre estudar apesar de tudo, afinal é nossa única oportunidade de libertação de um sistema que insiste em oprimir e apagar corpos negros.
O assassinato de Malcolm X em 1965 interrompeu fisicamente seu projeto educacional, mas não conseguiu apagar seu legado pedagógico. Hoje, mais de meio século depois, seu método de aprendizado autodidata e crítico continua inspirando movimentos por todo o mundo. Em comunidades brasileiras, jovens criam cursinhos populares que resgatam a história africana; em prisões norte-americanas, internos organizam círculos de estudo baseados em seus escritos; em universidades da África, acadêmicos desenvolvem teorias decoloniais que ecoam suas ideias. A educação como arma de libertação — este continua sendo o principal legado de Malcolm X, uma lição que permanece tão urgente hoje quanto nos anos 1960.
Num mundo onde o acesso ao conhecimento ainda é desigual e onde as narrativas oficiais continuam marginalizando vozes dissidentes, seu exemplo nos lembra que a verdadeira educação deve ser sempre um ato subversivo. Assim, como ele mesmo disse em um de seus discursos: “Eles falam em ‘integrar’ o negro na sociedade americana. Mas como você integra um homem que está queimando no meio do inferno? Não queremos ser absorvidos pelo sistema podre que nos esmagou por 400 anos. Queremos construir nosso próprio poder, nossa própria excelência, nossa própria civilização e então decidir se, quando e como nos relacionaremos com quem nos oprimiu.”
Menos presídios e mais escolas: essa urgência reafirma que, enquanto o sistema silencia e o Estado vira as costas, a favela sofre e resiste. A violência contra os corpos negros não é apenas física, mas também simbólica, uma tentativa cruel de apagar nossa história e nossas conquistas. Porém, assim como Harriet atravessou águas turbulentas em busca de liberdade, seguiremos cantando nossa vitória, porque o povo preto quer — e vai — viver.