Uma Análise Crítica sobre a Realidade da População Negra no Brasil.
16 de fevereiro de 2025
Por: Viviane S.Silva
Revisado: Ed Carvalho
Resumo
A construção da identidade negra no Brasil, os quais permeiam todas as esferas da vida social, tem sido um processo tanto complexo quanto desafiador. Em cidades como Ouro Preto - MG, que carregam em sua história as marcas da escravidão e da resistência negra, essa identidade é constantemente confrontada pelas construções sociais de raça e pela invisibilidade das vivências negras na sociedade em geral. O pertencimento, a luta contra o racismo estrutural e o reconhecimento da diversidade de experiências são temas urgentes para um Brasil que, embora tenha uma população majoritariamente negra, ainda privilegia figuras brancas em esferas políticas, econômicas e culturais. Este artigo propõe refletir sobre esses temas, entrelaçando aspectos históricos, sociais, políticos e culturais, e analisando como o racismo estrutural impacta a vida das pessoas negras, especialmente aquelas de pele clara, como uma experiência que transcende questões biológicas e se entrelaça com gênero, classe social e educação.
Palavras-chave: Identidade negra, racismo estrutural, pertencimento, resistência negra, invisibilidade, interseccionalidade.
Abstract
The construction of Black identity in Brazil, which permeates all spheres of social life, has been both a complex and challenging process. In cities like Ouro Preto - MG, which carry the marks of slavery and Black resistance in their history, this identity is constantly confronted by social constructions of race and the invisibility of Black experiences in society at large. Belonging, the fight against structural racism, and the recognition of the diversity of experiences are urgent issues for a Brazil that, despite having a predominantly Black population, still privileges white figures in political, economic, and cultural spheres. This article proposes to reflect on these issues, intertwining historical, social, political, and cultural aspects, and analyzing how structural racism impacts the lives of Black people, especially those with lighter skin, as an experience that transcends biological issues and intersects with gender, social class, and education.
Keywords: Black identity, structural racism, belonging, Black resistance, invisibility, intersectionality.
Introdução
O Brasil, como nação marcada pela escravidão, carrega em suas estruturas sociais as profundas marcas do racismo, que não se limitam a manifestações explícitas de intolerância, mas também se enraízam em práticas cotidianas e microagressões. Segundo o Censo de 2021 do IBGE, a maior população negra fora do continente africano reside no Brasil, com 56% da população se identificando como negra ou parda, totalizando mais de 100 milhões de pessoas. Ouro Preto, por exemplo, não somente preserva a cultura negra, mas também exemplifica como a história da escravidão e a presença negra nas diversas camadas da sociedade ainda são relegadas a segundo plano.
O sociólogo Darcy Ribeiro, em O povo brasileiro, discute como a identidade mestiça construída no Brasil, embora celebrada, não considera a profundidade das questões raciais. A mestiçagem, como ele observa, foi, muitas vezes, uma forma de tentar aniquilar as referências culturais negras, ao mesmo tempo que escondia o racismo estrutural que ainda persiste. A ideia de “negro de pele clara”, é um exemplo claro de como as noções de raça e identidade se entrelaçam complexamente e, muitas vezes, contraditória. A sociedade brasileira, ao tentar segmentar as experiências negras, coloca o negro de pele mais escura como o “verdadeiro” negro e interliga com a vulnerabilidade do sofrer o racismo, apagando as especificidades e a rica diversidade da ancestralidade negra no Brasil.
Neste contexto, o racismo não se manifesta apenas de maneira explícita, mas se esconde em atitudes sutis e cotidianas, em falas, olhares, gestos e comportamentos que desvalorizam e marginalizam as pessoas negras. Felipe Vidal, sociólogo e ativista, alerta para a importância de compreender o racismo não somente como uma prática de discriminação direta, mas também como uma construção social que perpassa todas as esferas da vida pública e privada. Segundo Vidal, é essencial que se reconheça o racismo como um fenômeno multifacetado, que se enraíza em práticas sociais, políticas e econômicas de uma sociedade que se diz democrática, mas que ainda privilegia de forma sistemática os brancos.
Racismo, Microagressões e as Fraturas Interseccionais
O racismo vai além das ações explícitas de discriminação. Ele se manifesta de forma sutil, em microagressões(1) que se revelam no cotidiano. As microagressões são situações que, muitas vezes, passam despercebidas, mas que têm um efeito profundo sobre a autoestima e o bem-estar psicológico dos negros. Elas podem ser expressões como um comentário sobre o cabelo de uma pessoa negra, um olhar atravessado ou uma piada sobre características físicas, todas reforçando estereótipos raciais. Essas agressões, que podem parecer inofensivas a quem as profere, representam um ciclo contínuo de desvalorização da identidade negra, que se acumula ao longo do tempo, levando à sensação de exclusão e inferiorização. Esses pequenos gestos, que muitas vezes são invisíveis até mesmo para aqueles que os cometem, reforçam estereótipos negativos e perpetuam a ideia de inferioridade das pessoas negras.
O problema do racismo estrutural no Brasil é exatamente esse: ele está entranhado em todos os níveis da sociedade, desde o tratamento nas ruas até as políticas públicas. Embora o racismo explícito seja mais fácil de identificar, é o racismo velado, que se esconde atrás de palavras ou gestos aparentemente inofensivos, que mais prejudica. Por isso, é essencial que a sociedade se conscientize de que é preciso identificar e combater tanto o racismo flagrante quanto as atitudes mais sutis, que acabam por reforçar a hierarquia racial estabelecida desde o período colonial.
A interseccionalidade é um conceito fundamental para entender as múltiplas camadas de opressão enfrentadas por pessoas negras, especialmente por mulheres negras. A discriminação racial, quando combinada com o sexismo, cria uma realidade ainda mais difícil para essas mulheres. Elas são duplamente marginalizadas: por serem negras e por serem mulheres. O fenômeno da “dupla fratura social” afeta diretamente a vida dessas mulheres, tornando-as mais vulneráveis à violência, à exploração no mercado de trabalho e à falta de acesso a serviços públicos de qualidade.
As dificuldades enfrentadas pelas mulheres negras no Brasil são múltiplas, desde a violência doméstica até a falta de reconhecimento no mercado de trabalho, onde frequentemente recebem salários mais baixos do que suas contrapartes brancas e masculinas. Esse fenômeno também é refletido em dados estatísticos: as mulheres negras são as principais vítimas de homicídios e violência doméstica no país.
Conceição Evaristo (2003) também aborda a vivência das mulheres negras em seus escritos, trazendo à tona a resistência e a luta diária contra a opressão racial e de gênero. Ela critica a invisibilidade das mulheres negras tanto no feminismo quanto no movimento negro e enfatiza que a luta delas deve ser vista como central para qualquer movimento de transformação social.
O sociólogo Robert Miles afirma que é fundamental reconhecer como essas várias camadas de identidade se interrelacionam para compreender as experiências sociais de discriminação de forma mais holística e eficaz.
A falta de uma compreensão profunda dessas dinâmicas dentro da sociedade brasileira tem impactos diretos em como as políticas públicas são formuladas. A ausência de uma abordagem interseccional nas políticas educacionais, por exemplo, contribui para o agravamento das desigualdades. Em seu estudo sobre a educação, Sueli Carneiro denuncia como a escola brasileira, ainda marcada por uma visão eurocêntrica, contribui para a perpetuação do racismo estrutural. O currículo escolar muitas vezes apaga as contribuições dos negros à formação do país, não fornecendo aos alunos negros uma representação adequada de sua própria história e cultura.
O que é o ser negro?
Ser negro no Brasil é, antes de tudo, carregar um estigma histórico que remonta à escravidão. As vivências de pessoas negras, incluindo diversas formas de discriminação e racismo, revelam a dor de ser constantemente questionado sobre a própria identidade. Para indivíduos de pele clara, essa situação é ainda mais complexa, pois a identidade muitas vezes não é reconhecida nem pela população branca, nem pela comunidade negra. A identidade negra, especialmente para quem tem pele clara, é um fenômeno complexo, como discutido por Djamila Ribeiro em O que é lugar de fala?. Ela aponta que o racismo não se limita às pessoas de pele escura, mas também se manifesta de maneira distinta em indivíduos de pele clara, que frequentemente enfrentam invisibilidade dentro da própria comunidade negra. A sensação de não pertencimento é um dos maiores desafios enfrentados por quem tem a pele mais clara e, ao mesmo tempo, carrega o peso da ancestralidade negra.
Em algumas experiências observadas, especialmente no contato com a primeira família negra conhecida por meio da capoeira, ficou claro que tanto o pai quanto a mãe promovem uma educação baseada na valorização da identidade negra, centrada no diálogo e na transmissão de saberes culturais. Um exemplo disso são seus filhos, que, apesar de terem idades entre 6 e 14 anos, já demonstram grande domínio da cultura negra em suas vidas. As histórias de resistência e luta por reconhecimento são passadas de geração em geração, de pai para filho, como uma forma de combater o apagamento histórico dos ancestrais.
No âmbito familiar, destaca-se a prática constante de vivenciar e preservar esses valores. Sempre que há eventos culturais, como encontros de rap, capoeira, poesia, arte ou literatura, toda a família se reúne para participar e celebrar essas expressões culturais. Além disso, há uma forte ênfase no cuidado coletivo, em contraste com a perspectiva individualista comum em algumas culturas. Essa dinâmica pode ser comparada ao modo de vida familiar africano, em oposição ao modelo familiar europeu.
A busca por referências culturais é constante. Ramon, por exemplo, é mestre de capoeira graduado no grupo Cativeiro, em Ouro Preto, e compartilha essa prática com sua família. A música também tem um papel central na vida dessa família, com o pai e a filha, Malyka, ambos rappers. Malyka descreve suas músicas como “um grito por aquele que é silenciado”, abordando temáticas socio-raciais vivenciadas em Ouro Preto.
A religião também é um aspecto fundamental dessa identidade. A família está inserida nas religiões afro-brasileiras de matriz africana, como o Candomblé Ketu e a Umbanda. Ramon e Malyka ocupam cargos religiosos importantes, e a mãe e o irmão também são filhos do Ilé Axé Ofá LogunEdé. Além disso, todos consomem e promovem a cultura negra por meio de músicas, livros, arte e até mesmo da alimentação, transmitindo esses conhecimentos e práticas às gerações seguintes.
Apesar disso, o racismo é uma realidade constante, manifestando-se em gestos sutis, como olhares de desprezo, ou em situações mais agressivas de discriminação. A maneira como essa família enfrenta essa realidade, com resistência e resiliência, é também uma história de força e afirmação de identidade. A construção dessa identidade, mesmo diante das adversidades, é um ato de resistência. Reconhecer a história e a luta dessa identidade é fundamental para não permitir que a opressão a defina.
A Transmissão do Conhecimento e a Importância da Educação
A educação no Brasil continua sendo uma das principais barreiras para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. As desigualdades educacionais refletem as desigualdades históricas e sociais, criando um ciclo de exclusão. Para as pessoas negras, o acesso à educação de qualidade é um desafio que envolve não apenas questões financeiras, mas também raciais. A falta de representatividade e o preconceito ainda são obstáculos que dificultam o avanço de muitos estudantes negros no sistema educacional brasileiro.
A reflexão sobre a democratização do acesso à educação deve ir além da ideia de "igualdade". A verdadeira equidade deve ser o princípio orientador das políticas educacionais, o que significa reconhecer as desigualdades e trabalhar para compensá-las. Isso implica a criação de um ambiente de ensino que não apenas proporcione acesso, mas também acolhe a diversidade e respeite as particularidades culturais e históricas da população negra. O movimento negro, especialmente através da atuação do movimento negro estudantil, tem sido um importante protagonista na defesa de uma educação que dê voz e valorização às experiências de negros e indígenas no Brasil.
As desigualdades no acesso à educação de qualidade são profundas. Crianças negras, em grande parte, frequentam escolas públicas, onde as condições de ensino são muitas vezes precárias. Por outro lado, a população branca, que tem maior acesso à educação privada, se beneficia de um ensino de qualidade, o que reforça ainda mais as disparidades sociais e econômicas entre os grupos raciais.
Além disso, a educação deve ser um espaço para problematizar o racismo e suas manifestações em todos os níveis da sociedade. A invisibilidade da contribuição negra na formação da identidade nacional é uma das formas mais comuns de racismo educacional, como se a cultura e a história negras não fossem parte fundamental do que o Brasil é hoje. As políticas de ações afirmativas, como as cotas raciais nas universidades, são um passo importante na tentativa de corrigir essas distorções, mas ainda são vistas por muitos como um desafio a um sistema que privilegia a "meritocracia". No entanto, essas políticas são fundamentais para democratizar o acesso ao ensino superior e permitir que estudantes negros possam se projetar e disputar espaços antes historicamente fechados.
A Luta Antirracista e o Movimento Negro
A repercussão do movimento Black Lives Matter (BLM), iniciado nos Estados Unidos após a morte de George Floyd, teve um impacto global e gerou uma mobilização também no Brasil. No entanto, essa mobilização não é equivalente àquela gerada por situações semelhantes que, infelizmente, ocorrem todos os dias no país, muitas vezes sem a devida repercussão ou mobilização diante desses atos racistas. A luta contra o racismo e a violência policial encontra ressonâncias em ambos os países. No Brasil, a violência policial contra a população negra é uma realidade cotidiana, como evidenciado por casos como a operação policial que simula uma “câmara de gás” nas favelas, um exemplo de como as autoridades tratam as vidas negras com desdém e brutalidade.
Esse paralelo entre o movimento BLM e os protestos no Brasil mostra que, embora os modos de mobilização possam variar, a raiz do problema — o racismo estrutural — permanece a mesma. No Brasil, a reação a episódios como o de George Floyd ou as chacinas nas periferias brasileiras é marcada pela necessidade de reivindicar justiça e visibilidade para as vidas negras. O movimento negro no Brasil, com sua força histórica e política, busca constantemente dar visibilidade a essas questões e trazer à tona as reais condições de vida da população negra, muitas vezes invisibilizada pelo discurso oficial.
Considerações Finais
A luta pela igualdade racial no Brasil exige uma abordagem que compreenda a complexidade das questões sociais, históricas e culturais. As múltiplas dimensões de identidade — como classe, gênero e raça — devem ser consideradas nas políticas públicas, pois essas intersecções são fundamentais para entender a experiência da população negra no Brasil. A construção de um país verdadeiramente democrático e inclusivo só será possível quando as vozes negras forem ouvidas e suas experiências reconhecidas. O movimento negro, com suas lutas e resistências, desempenha um papel fundamental na transformação da sociedade brasileira. Como disse a pensadora Lélia Gonzalez, "o racismo é um problema estrutural e não uma questão moral". Portanto, a luta antirracista no Brasil é uma luta de todos, que deve buscar não apenas a igualdade, mas a equidade, garantindo a todos os cidadãos, independentemente da cor, acesso a uma vida digna e a um futuro melhor.
Referências:
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
VIDAL, Felipe. Raça, cidadania e movimentos sociais. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2017.
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Ed. Mulheres, 2005.
GONZALEZ, Lélia. A interpretação do Brasil na perspectiva da cultura afro-brasileira. Petrópolis: Ed. Vozes, 1982.
GLOSSÁRIO
1 - As microagressões são as pequenas indignidades comportamentais, intensionalmente ou não, que comunicam insultos raciais depreciativos que fazem a população negra se sentirem degradados, desumanizados e ofendidos.
Sobre a Autora:
Viviane S.Silva Curso de Ciências Biológicas Licenciatura da Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, MG, Brasil